Meu Primeiro Inverno de Verdade

A gente acha que sabe o que é inverno em São Paulo. Aquela garoa fria e fina que penetra pelas frestas dos casacos e tricôs, o céu cinzento, o apartamento gelado… Tudo isso é muito chato, mas nada que peça um sobre-tudo. Não, caros leitores, São Paulo oferece apenas um friozinho dos trópicos.

Frio mesmo eu passei no meu primeiro inverno aqui em Atlanta. Não porque aqui se tenha um inverno super rigoroso, não, não, já vi piores em terras escandinavas, e também recebo relatos terríveis da Sandra lá na Alemanha. O meu primeiro inverno em Atlanta foi difícil porque eu não estava preparada para ele.

Brincar na neve é uma delícia, desde que se tenha a roupa certa, senão você põe os pés para fora e dali a meia hora corre para dentro todo molhado e gelado até os ossos. Ao invés de garoa fina é gelo que molha toda sua roupa e sapatos. De repente a gente começa a bater os dentes. E nem pensar em luvas de tricô, a não ser que se queira perder os dedos.

Depois do fiasco de chamar minhas filhas para brincar na neve só para ter que chamá-las de volta e colocá-las para tomar um banho quente para degelar, veio o fiasco no shopping. O pessoal aqui é prevenido. Não encontrava em loja alguma os tais macacões de nylon que mais parecem umas tendas gigantes para se brincar na neve, muito menos botas de neve. Não, as botas não são de neve, elas são de material a prova d’água forradas de pele de carneiro ou alguma outra coisa parecida. Achei melhor explicar antes que alguém faça a mesma gracinha do meu marido que se ofereceu várias vezes para fazer uma bota com a neve acumulada no quintal. Enfim, como ia dizendo, tudo esgotado, parei de procurar quando cansei de pagar mico para os vendedores das lojas que riam e diziam: “Agora? Minha senhora, já estamos preparando as vitrines de primavera. Veja se a senhora dá sorte na arara da liquidação,” eles falavam rindo, com gosto. Fala sério! Ainda estávamos no meio de janeiro. Aqui o inverno começa alguns dias antes do Natal e vai até o começo de março. Ainda estávamos no começo do inverno. Como americano compra adiantado!

Mas o pior mesmo foi o show que eu dei para os vizinhos. Só consigo me desculpar porque era muito cedo e acho que meu cérebro ainda não estava funcionando. Aprendi naquele inverno que depois da neve vem o gelo. Ah, o gelo fino e transparente feito cristal que cobre todas as calçadas e ruas, ou branco-sujo se a neve acumula-se o suficiente. Aquilo escorrega mais que quiabo, é pior que sabão, nunca caí mais espetacularmente que naquele dia.

Acordo bem cedinho, assim lá pelas 5:45hs da manhã, num breu de meia-noite. É necessário esclarecer que não sou criatura matutina. Sabe aquelas pessoas que levantam dispostas, dando bom-dia para todo mundo? Não têm nada haver comigo. De manhã cedo sou mais para calada e com cara de perdida. Se estiver num dia ruin então, totalmente ranzinza. Não tenho como negar, há muitas testemhunhas.

Naquela manhã em particular, levantei-me e estava preparando o café quando as minhas filhas, que são animadíssimas logo cedinho, começaram a gritar excitadamente: “Mamãe, está nevando! Venha ver que lindo!” Eu vesti o sobre-tudo, as luvas, o cachecol, a touca e as botas comuns que eu tinha, sem borracha anti-derrapante, abri a porta e disse: “Deixa a mamãe ver como está a temperatura daí vocês saeeeemmmmmm…” Saí escorregando num pé só, tentando me equilibrar sem ter onde segurar. Quando finalmente consegui pôr o outro pé no chão, já estava perto do degrau e caí de bunda. Peço perdão aos leitores mais sensíveis, mas não tenho outra palavra para usar nessa situação, bumbum não faz juz à queda.

Minhas filhas não conseguiam segurar o riso e foram correndo chamar o pai, que ao me ver sentada no degrau da frente da casa debaixo de neve quiz ser gentil e pisou no quiabo branco. Foi tão bonito. O pobre homem ainda estava de pijama e roupão, e com a barba feita pela metade. Eu até que tentei me levantar e ajudá-lo, mas foi em vão, caí de novo, junto com ele. A esta altura minhas filhas já estavam rolando no chão de tanto rir. Meu marido e eu ficamos sentados por um tempo, assim com quem está apreciando a paisagem. Acenamos para um vizinho que saía da garagem com o carro. O homem deve ter pensado que éramos loucos, ou deslumbrados que nunca haviam visto neve, sei lá…

Finalmente nos levantamos com nossas bundas geladas e doloridas, e nos apoiando mutuamente, assim feito bêbados caminhando pela calçada em fim de festa, conseguimos entrar em casa. Mas nossos percalços não haviam terminado. Meu marido precisava caminhar até o carro que havia ficado do lado de fora da casa, pois a garagem ainda estava cheia de caixas de mudança. Enquanto ele se trocava para ir trabalhar eu, muito prestativa, tive a brilhante idéia de tentar derreter o gelo com água quente. E comecei a fazer viagens entre a cozinha e a entrada da casa com canecas de água pelando que eu pegava da torneira. Minha vizinha, canadense é claro, passou na frente da minha casa levando o cachorro para sua caminhada matinal, mesmo embaixo de neve, coisa de gente que nasce muito distante da Linha do Equador, ela ao me ver jogando água sobre o gelo perguntou se eu estava fazendo um rinque de patinação para as crianças.

Claro, a água estava muito quente ao sair do aquecedor, mas a temperatura lá fora naquele dia era de -6ºC e poucos minutos após cair sobre o concreto gelado ela congelava-se espessando ainda mais a camada de sabão escorregadio. Uma beleza!

Depois dessa revelação acenei sorrindo para minha vizinha que seguiu seu caminho segurando a gargalhada, entrei, fechei a porta, e dancei o vira! Eu posso, afinal sou casada com um português.